quinta-feira, 20 de junho de 2013

Vírgula e mudança de sentido

Para preserver identidades pessoais e institucionais, o texto abaixo foi adaptado de um cartaz de protesto. 

Vejam se conseguem entender a mensagem:

“Professor Beltrano Superintendente Geral, pedimos que se junte a nós contra a luta demonstrando qual a sua posição. Com os últimos acontecimentos da semana que logo publicaremos mais que nunca precisamos do senhor ao nosso lado. Podemos contar com isso?”

Do modo como está escrito,  esse texto está totalmente caótico e, por isso mesmo, sem sentido. Mas se colocarmos as vírgulas que estão faltando e que, nesse caso, seriam obrigatórias, o texto torna-se inteligível e passa a fazer sentido. Observem:

“Professor Beltrano, Superintendente Geral, pedimos que se junte a nós contra a luta, demonstrando qual a sua posição. Com os últimos acontecimentos da semana, que logo publicaremos, mais do que nunca precisamos do senhor ao nosso lado. Podemos contar com isso?”

Notaram a diferença? Ficou bem mais inteligível, não é mesmo?!

Agora, vejamos as explicações de cada uma das vírgulas empregadas. 

A vírgula que separa BELTRANO de SUPERINTENDENTE GERAL deve ser empregada porque separa o vocativo PROFESSOR BELTRANO de seu aposto SUPERINTENDENTE GERAL; a virgula que separa LUTA de DEMONSTRANDO também deve ser empregada porque separa a oração principal PEDIMOS QUE SE JUNTE A NÓS CONTRA A LUTA de sua subordinada de gerúndio DEMONSTRANDO QUAL A SUA POSIÇÃO – embora essa vírgula não seja obrigatória, visto que a reduzida vem depois e não antes da principal, recomendamos seu emprego em prol da clareza; as duas últimas vírgulas do parágrafo também devem ser empregadas para separar a oração subordinada adjetiva explicativa QUE LOGO PUBLICAREMOS, que está intercalada entre o adjunto adverbial de causa COM OS ÚLTIMOS ACONTECIMENTOS DA SEMANA e a oração principal MAIS DO QUE NUNCA PRECISAMOS DO SENHOR AO NOSSO LADO. Além das vírgulas, precisamos acrescentar o DO à conjunção comparativa MAIS QUE.

Viram como a falta de vírgulas essenciais à compreensão compromete o sentido do texto?

Um abraço e até a próxima,
Sandra Helena



    

quarta-feira, 19 de junho de 2013

"Reprovamento"


Veja o "e-mail" abaixo:
“Prezado prof.beltrano,
meu nome é Fulano de Tal, cujo CI seria XXXXXX. venho por meio deste email, solicitar gentilmente que verifique/revise minha nota de prova feita se não me engano no dia 00/00/0000 na sala X de administração. cuja a mesma saiu de modo incorreto no meu sistema de notas na intranet, e prejudicou meu semestre apresentando um devido “reprovamento”, por isso peço encarecidamente que se possível responda este e-mail o quanto antes para que devidas ações sejam tomadas.

grato.”
Esse “e-mail” foi enviado a um professor por um de seus alunos. 

Para que pessoas e instituições fossem preservadas, foram alterados alguns dados dessa mensagem cujo texto apresenta uma série de problemas de ordem sintática e semântica, a saber:

a) O primeiro problema já aparece no vocativo da mensagem: parte do vocativo foi grafada em letra minúscula, além de não apresentar espaço entre “Prof.” e o nome do destinatário.

b) O início do primeiro e do segundo período do “e-mail”, bem como o agradecimento final, também foram escritos com letra minúscula, contrariando a norma segundo a qual os períodos que constituem um texto (empresarial, acadêmico, jornalístico) devem, necessariamente, ser iniciados com letra maiúscula, exeção feita a textos literários (poema, músicas) nos quais os autores têm liberdade para sobrepor o estilo artístico e individual à norma. É o que se observa, por exemplo, na poesia concreta. Ainda no primeiro período, o autor usa “cujo RA seria...”. Por que “seria” e não “é”? Acaso o aluno ainda tem dúvida quanto ao número de seu CI (código de identificação) depois de ter cursado todo um semestre letivo? Ao usar o futuro do pretérito do indicativo, o autor passa ao leitor a impressão de que não tem certeza do número de seu CI, pois o futuro do pretérito do indicativo, bem como os tempos verbais do modo subjuntivo, são empregados quando se deseja expressar “dúvida, hipótese, desejo”. Por isso, o autor do “e-mail” deveria ter empregado o verbo “ser” na terceira pessoa do singular do presente do indicativo (“é”), modo verbal que tem a função de indicar certeza e objetividade.  

c) O uso do chavão “venho por meio deste(a)” deve ser evitado a todo custo, pois é o tipo de frase que não acrescenta absolutamente nada de útil à informação que se deseja transmitir, além de enfear a mensagem. Além disso, não deveria haver uma vírgula entre “email” - com hífen e entre aspas (por ser palavra estrangeira usada em um texto em vernáculo) – e “solicitar”. Ainda em relação a esse período, o autor deveria ter colocado entre vírgulas a expressão “se não me engano”, bem como o dia da realização da prova, para separar os adjuntos adverbiais que se encontram encadeados; ter substituído a expressão “no dia 00/00/000” por “em 00/00/0000”; e ter usado inicial maiúscula em “administração” por ser o nome de um curso de graduação. 

d) O último período do “e-mail” é o que mais apresenta incorreções. A primeira se refere ao uso de “cuja a mesma” no início do período. Os pronomes relativos jamais podem ser usados em início de período, pois têm a sua função de ligar termos de uma mesma sentença ou termos de diferentes sentenças de um mesmo período. Além disso, os pronomes relativos “cujo(os) / cuja(as)” não podem vir seguidos de artigos definidos (o, os, a, as), pois esses pronomes já trazem em si  marca de gênero (feminino/masculino) e número (singular/plural). Portanto, “cujo(s) o(s)” ou “cuja(s) a(s)” simplesmente não existe! Aliás, o pronome “cuja” usado no “e-mail” não apresenta qualquer referente, ou seja, não se liga a coisa alguma, já que o elemento ao qual deveria se referir (nota da prova) ficou no período anterior, e não pode haver essa distância entre o pronome relativo e o termo ao qual ele se refere. Também não deveria haver vírgula entre “intranet” e “e prejudicou”, pois ambas têm como sujeito “a mesma”. A vírgula entre “’reprovamento’” e “por isso” deveria ser substituída por um ponto final, pois a ideia do período encerrado por "reprovamento" já havia sido concluída. É escusado dizer que “reprovamento” não existe no léxico da Língua Portuguesa. A palavra correta é “reprovação”! As aspas, nesse caso, foram usadas não para marcar o “neologismo” criado pelo aluno, mas sim para enfatizar a reprovação deste

e) Além dos problemas de ordem semântica, que serão abordados no próximo item, a expressão “se possível”, presente no último período, deve vir separada por duas vírgulas, por ser uma oração subordinada adverbial condicional interferente (ou intercalada).

f) O “e-mail” também contém vários problemas semânticos. Ao longo de sua mensagem, o aluno mistura expressões de etiqueta linguística (“solicitar gentilmente”, “peço encarecidamente”, “se possível”) a verbos no imperativo (“verifique/revise”) e expressões de cunho autoritário e ameaçador (“o quanto antes para que devidas ações sejam tomadas”). Além disso, afirma que sua nota “saiu de modo incorreto no meu sistema de notas na intranet”, confundindo nota incorreta com nota insuficiente para aprovação.

Escrevendo assim será difícil persuadir o professor a revisar a nota, e o aluno dificilmente conseguirá a tão almejada aprovação!

Um abraço e até a próxima!
Sandra Helena